quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Marcas do que se foi, sonhos que vamos ter

Comecei a trabalhar em escritório de advocacia pouco menos de dois meses após minha formatura - entre ela e o início desse sacerdócio de renúncias, os aclamados meses de janeiro e fevereiro que nada serviram para um graduado desempregado e fedorendo (fedorendo é brincadeira, evidentemente).

O escritório ficava em cima do antigo cinema Victória - aliás, como é surpreendente me ver referindo a algo que vivi como "antigo", dividido com advogados trabalhistas e civilistas, estes os quais eu assessorava diretamente (ambos até hoje meus amigos e um deles meu "senhorio" no gabinete em que sou locatário).

Era do tempo em que eu (ainda) circulava pelo centro de Porto Alegre - o que hoje só faço contrafeito, aliás, é provável que eu vá hoje à tarde ainda. Enfim. Almoçava por ali mesmo, nos restaurantes da Andrade Neves. E por ali, creio que nas "Brasileiras" (existe ainda?) comprei uma xícara de porcelana para o meu café diário no escritório. Virou um símbolo de meu início na carreira jurídica, pós-formatura.

Acompanhou-me a xícara por todos os escritórios e empresas e ongs que trabalhei. Digo desse jeito para parecer que foram muitas, mas de fato foram alguns locais de trabalho nesses quatorze anos de trajetória insistente (todo dia acordo e me pergunto, "por quê??"). Enfim de novo.

Tratei com maior carinho minha xícara, branco com detalhes em azul e com desenhos e inscrições em sua lateral. Pois dias desses quando fui lavá-la, a fatal escorregada das mãos e pá-pum, quebrou-se a alça. Clamou pela aposentadoria a xícara, substituída por uma de vidro transparente fornecida conjuntamente com uma famosa marca de café solúvel (depósito em minha conta para eu referir o nome, please).

Desse modo perdi algo, uma coisa inanimada, mas cercada de afeto e significação em minha vida. Não mereceu maiores lamentos do que aquela consternação de que as coisas estão aí justamente para nos deixar, enquanto nós não as deixamos. É a efemeridade da existência, inclusive das meras coisas sem valor senão sentimental.

E quantas dessam passam por nós e deixam as marcas de um passado que se foi? E quantas vezes os símbolos de nosssa juventude, de uma conquista inesquecível, de um banho de chuva inusitado, partem do mundo material como que agradecendo por terem sido tão especiais, mas que chegou sua hora e que, portanto, devem ser substituídas?

Há muito disso com carros. Com roupas. Com aquele apartamento que significou o rompimento de uma vida dependência. Com aquele primeiro disco do Black Sabbath comprado num brique do viaduto da Borges. E até com xícaras de cafés sorvidos em meio a agravos de instrumento, petições iniciais e embargos que não serão providos.

A vida é assim, dinâmica e sacana. Há quem não se apegue a nada, nem a coisas, sequer a pessoas. São vidas vazias, existências sem amor. Sentimento deturpado. O verdadeiro amor é altruísta. Mas isso também já é outra discussão.

O título desta crônica vem da música "Marcas do que se foi", composta por Zurema e imortalizada pelos Incríveis na campanha de ano novo da Globo, creio que em 1976. Diz o refrão:

"Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer"


E segue a vida. Vou lá tomar meu café na xícara nova!

___

p.s. Quem quiser ver uma montagem com essa música, dá uma olhada em http://www.youtube.com/watch?v=gRxOCYMiAcE

Um comentário:

** L. ** disse...

Belíssimas palavras. Parabéns pela poesia em forma de "post".grace

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