sábado, 26 de dezembro de 2009

A dor em três tempos

1 - DE UM TEMPO DE PARTIDA

Agora que conseguira deixar para trás os dias que jamais voltariam, propôs-se trégua: um jeito meio intrínseco de ser, evitando os lugares outrora freqüentados. Novas roupas também fariam parte dessa não repentina mudança, quando à noite permanecia revendo os melhores filmes da vida, analisando as possibilidades virtuais de reviver.

Comia demais, as solidões impostas sempre abastecidas de pizzas de viagem, baurus, comida chinesa (agora ele lembra: que ela tanto gostava) ou simplesmente saladas montadas com a feira feita na geladeira. Preparava os legumes de sua preferência, cozidos, ou crus ainda que pouco temperados, abrindo mãos por vezes do álcool em favor de sucos de caixinha achados no supermercado.

Assim pretendia viver. O trabalho era executado com a perfeição das horas, entretanto faltava-lhe amor àquilo que fazia. Importava? O salário poderia ser bom, o ambiente idem, colegas, um raro futebol no mês em que não chovia… Lá estaria ele, no último sábado, escondendo-se do jogo apesar de estar em campo. Vezenquando a bola, sua inimiga, o visitava, intimidando, convidando, quase sempre em tom de desafio. Sem pensar em tudo que ocorria ao redor, tratava-lhe rispidamente, afastando-a com um chute quase nunca certeiro, mas eivado de dor. Doía-lhe o pé, o tornozelo, não tardava em deixar o gramado reclamando tais dores.

Quando arriscava algum programa noturno, não ia além do protocolar cinema, um chope em algum pub escondido, um simples passeio pela noite desafiando perigos. Por mais que a si evitasse, deixando para trás o convívio um dia social, impossível deixar de ser reconhecido por alguém que abanasse, estende-se um sorriso, às vezes a mão para um aperto, o rosto para um beijo, e sempre os comentários: “Estás mais magro”, “Cortaste o cabelo?”, “Nunca mais viste a…?”. Pouco falava, procurando não estender conversas que ensejassem eventuais convites para o retorno de jedi, parecia claro que ele estava fora.

Uma viagem para deixar pelo caminho os restos das coisas que não foram destruídas pela dor nem serão apagadas pelo tempo: era o que planejava, sem promessas, sem cálculos, apenas planos internos que não necessitavam de maiores explicações. Seu descomprometimento era algo que perduraria no novo estado de espírito, mais impuro depois do mês da despedida.

Tanto seguira o tempo da espera, do desejo, da lembrança, da dor. Apagar tudo da mente e do corpo talvez fosse a maior necessidade imposta. O resto eram os dias do tédio concentrado em si.

Na nova atmosfera criada, ainda frágil, como se pode notar, o reencontro fora inevitável. Obra de um acaso que jamais se importou com dores infindas ou mentes que se desequilibram: pois faltava aquele equilíbrio de uma emoção que se dissipara no ar, o mesmo ar irrespirável a que pensou estar subjugado. A fuga, agora, era inútil, além de covarde. O enfrentamento seria supor uma guerra que não mais nunca existira. Indiferença? Abandono? Silente se fez, palavras não mais possuíam o condão de traduzir um só gesto que fosse.

Ela deteve-se diante dele. Hesitação, porém sem êxito. Melhor o momento que não existira, uma vida a menos vivida no mundo. Impossível negar. Um nada no vazio é apenas a negação do que inexiste. Trevas foram feitas para ser evitadas. A luz daquele dia não. Não havia sóis para iluminar, nem nuvens para escurecer. Nada, de repente apenas os dois. Um mundo? Talvez. Um átimo para se decidir o que. Não fazer, omissão, talvez pedir socorro, socorrer-se de fatores externos para nunca mais existir no momento. Desistir, enfim. Um segundo é muito tempo para quem sempre planejara fugir. Disso ele sabia.

Prostação para além daqueles dias que ficaram pesando-lhe na retina, como um filme que insiste em reprisar diante de si.

Em desespero, a alma lhe deixara inquieto, com seus demônios habitando o Porão dos Pensamentos Proibidos. Havia ultrapassado a porta dos limites impostos, jogara-se no nada, mãos tateando o inexistente ponto futuro. Quedas só se fazem se há o chão logo abaixo. Agora permeava o irreal, num poço sem fundo, nos sonhos povoados na infância, um único pesadelo medonho, que prenunciavam a morte da coisa e/ou seu ressurgimento, mais feroz, e sempre com maior dor.

Entretanto, fingia-se ainda real: era dia e era madrugada, chovia e fazia sol, havia barulho mas também o silêncio anônimo que acusava um sumário julgamento dos fatos, obra do acaso nem tão ocasional assim, ele poderia saber. Porque nada seria inevitável se pudesse mesmo prever. Não havia premonições em sua vida, mas um certo talento (pode-se dizer assim) para revisitar as dores submersas no incansável consciente.

Juntou as mãos num movimento quase como uma oração. Os olhos fechados tentando penetrar na mente inquieta. Bate mais forte coração, a alma trocou de casa, o amor mudou mesmo de lado. Seria até impossível respirar, conviver, enfim. Se tudo fosse um jogo (não o futebol, alegoria de seu desamor), talvez pôquer, ou estava diante de um blefe ou não pagando pra ver, mais possivelmente pagando para não ver. Em fuga para uma outra dimensão onde não precisasse do amor, já sem alma, despudorado do sentimento.

Embora quisesse reagir, poderia fazê-lo, não houvesse o sempre medo imposto na relação: eis que uma vez, ou tantas vezes, ele podia agora lembrar-se, fora acusado de covarde. Seria mesmo covardia não querer mais a dor? Até quando deixaria de respirar? Por que mesmo estava negando a si o momento? Quem lhe disse que era inútil renunciar? Sabia da escolha e da renúncia, do nascimento e da morte. Amores e dores ressuscitam? Jamais deixam de existir? Somem, dissipam, esmaecem? O abandono das idéias era no momento o que mais lhe doía.

Havia portas mas não se seguiam labirintos. Chaves sem segredos, nada mais a esconder. Exposto mesmo ficara, e ela coadjuvara com o instante em fingir não existir. Mais fácil o fingimento quando não se sabe se, por que ou até quando existir. Pôde apenas por mais um segundo somado a todos os outros de sua frustração, mas num único e solitário segundo, perceber-se feliz. Era a hora de não ter sido.

Não foi. Não amou, nem foi feliz pelo resto de sua vida.

(continua)

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