terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Exílio

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípios mas com fim...


(Fernando Pessoa: Hora Absurda)



Estou no abandono, algo fora demais, um lá-fora que não prevejo, não alcanço, não sei existir. Como posso estar em algum lugar sem sequer existir? Porque se pergunto a ti da minha existência, haverás de querer saber: quem sou? que quero? eu realmente quero alguma coisa? Perguntas retóricas que explodem no espaço, inútil vazio que criei. É isso. Não vivo para ti porque criado no vazio, um nada que não tem dentro não tem fora. Sem forma, sem esboço, sem conceito, sem mapa, sem luz, sem água. Como se fosse um deserto, um deserto em um sonho, algo que não posso dominar, sonhos não se evitam, eles vêm, e como vêm sonhamos e até pensamos existir. Aí que me engano, minto toda uma vida. Pois não há pai, mãe, irmãos, parentes até algum distante grau, e exatamente por isso não há heranças nem festas de aniversários. Parei no tempo, não tenho calendário, não tenho nada que me guie. Não há dia hoje, o mundo não se move em rotação e translação, não há noite, muito menos lua cheia. Assim: não há conceitos!

Vejo-me num torpor, como se ontem tivesse bebido demais. Mas não há o ontem. Ah!, como eu queria viver numa redoma de vidro, ser como John Travolta no filme da bolha. Mas não aquela (horrenda) bolha transparente; espelhada, para que de dentro eu pudesse ver sem ser visto. Observar a monotonia do mundo daqueles que não têm suas próprias bolhas. Ou não as usam porque não querem não sabem não podem não deixam não. Eu posso tudo. A embriaguez me autoriza a conquistar mundos, tão diferentes desse que tenho vivido, das verdades que inventei para suportar o que os outros chamam realidade. Eu sei que nada é real, que tudo é imaginação descoberta invenção ou mentira. Ou sonho, agora estou sonhando e não admito a hipótese de acordar. Durmo, não haverá quem me acorde, vivo só, um sonho num sonho, tudo o que suponho, agora é Edgar Alan Poe a visitar-me sorrateiro no delírio, com o corvo, com o assassino da rua Morgue, enfim. Por isso é mais fácil sonhar.

Posso inventar Mozart, Machado de Assis, Madre Tereza, Da Vinci, Alexander Graham Bell, agora todos os telefones estão ocupados, ligue mais tarde. Voaria, se tivesse asas, e não dependeria de telefonemas. Se a bolha voasse, ou flutuasse, fosse menos densa que o ar. Tudo que sobe desce. É a lei, Isaac. Percebo-te, no sonho, na bolha, no nada, não te perdôo por não tentar. Nesse delírio do qual pretendo tomar conta, vejo também Luís XV, Lady Di, Ayrton Senna, posso ouvi-los mas, incrivelmente, nada tenho a dizer. Vão-se embora sem que eu possa ao menos apertar-lhes as mãos. Sei que ainda não morri, estou no meio caminho onde há meia-volta, existe meia-partida. Posso retornar. Agora. Sempre. Com um olhar, com um gesto, com um grito. Mas não sinto dor.

Não quero agora voltar, não há tempo, não há definições, estou mesmo em outra dimensão. Dispenso as visitas, não mais recebo mortos em minha bolha, podem infectá-la. Tenho minhas defesas, imunidades, mas. A bolha é o mundo que eu enxergo, é a realidade mais próxima que posso tocar, sabes que invento qualquer coisa, ego cêntrico, mesmo, sem receios. Não ouço os chamados que me convocam de longe, o barulho assusta, o silêncio aliena. Tudo como parte de uma despedida que preparei para mim. Agora esse mundo irá implodir, ressurgir, decolar, ingressar nessa outra dimensão ou permanecer imerso entre a terceira, quarta, quinta era.

Sinto não poder agarrar o tempo, ceder o espaço. Andando como se no escuro, olhos fechados, um cego proposital, mas não de uma cegueira que percebe as coisas pelo tato, pelo sentido, orientação, algo como um recém cego, uma loucura quase que lúcida. Assim: depois de uma carreira bem servida, uma dose certeira, melhor que trepar, é como se diz, um gozo que não se compara mas. Não, não dá para mensurar essa loucura a tempo de se frear um caminhão desgovernado, um não-sentir de emoções que não se repetem. Digo sim, que sim, que poderia determinar o meu destino, sem controlar o tempo, o espaço, o dia. Como se fosse dia, manhã, ressaca, e já devesse estar n’alguma repartição autuando processos, sim, mas ligaria novamente para dizer que estou atacado da. Vejamos, poderia ser, dessa vez, vesícula. Que estou na cama, tomei três comprimidos (um deles azul) e li a bula sem entender muito bem dessas coisas de doseamentos e et cetera. Que vou ao médico, amanhã, sem falta pela manhã. Quer dizer que só irei trabalhar pela tarde. Que permaneceria em casa e ligaria quando estivesse melhor. Mas nada é real, já disse que não há ontem ou amanhã, porque o tempo.

O tempo me aborrece, a maneira como ele passa, o andar das horas, não há como precipitar o fatal desencontro. Assim como duas pessoas que se combinaram pelo correio sentimental encontrarem-se à porta do cinema, pipocas em uma mão, os ingressos na outra. Ela – a outra pessoa que pode ser ele, ela – não veio, não virá. O outro – que pode ser também a outra, ou A Outra – chora, compra CD’s novos, desestabiliza-se emocionalmente. Desencontro: A Outra, O Outro, referira-se a uma roupa azul mas, por distração, vestira verde. Nunca mais saberão que a vida poderia ter sido. Diferente talvez. São destinos, ou não.

Ah, talvez a doce hora da desistência, da renúncia final, o momento em que os loucos interrompem a também doce dor do suicídio, somente os loucos não vão adiante, porque há uma parte, um instante, um átimo em que o refúgio é a penúltima salvação, há sempre a possibilidade de novas tentativas. Mas nós, os loucos de um gênero muito específico, doidos de almas que erram e se entregam ao castigo do espírito: aqui jaz teu coração na mão depois de um beijo não dado. Melhor seria ter estado longe esses anos todos e não ter: conhecido, conversado, saído, beijado, amado, assim. Melhor sempre não viver, mais fácil seria. Viver? do quê? por e pra quê? simplesmente existir? sem respostas às insignificantes perguntas? acho que estou te entendendo, alma… Estás perdida querendo vir ao meu encontro. Pois venha, repouse, descanse, viva nesse meu corpo, afinal sem ele não sou, não sei ser, não existo. Sou apenas matéria. Reviva-me.

Eis por que me abandonei: como se fosse para não-existir. Desistir. Tudo bem, começo de novo a indagar essa inevitável inexistência. Não é minha culpa. Eu repito-me.

Amanhã será igual, aqui na bolha, porque não existirá. É esse amanhã que tu anuncias, e que vives, e que repete todos os passos um dia já dado. Tudo é o espelho do que já houve, isso é o que sei. A repetição de um único momento realmente vivido, o resto é tragédia.

Não sei mesmo por que continuar repisando, reprisando. Repetir e insistir são a mesma coisa? ou apenas insisto no que está errado? até que dê certo? até que não caiba ilusão? ilusão… eis um poema, enfim, um vago gesto mais rápido do que o olhar, ludibriando a mente, enganando milhões de neurônios que sobrecarregam-se nesse momento. Para não precisar mais existir, somente justificando a continuidade, através da repetição.

Digo e redigo: esse é o abandono a que me propus. Não há mesmo outras definições, elas apenas se confundem.

E eu insisto em existir. Desistindo?

(escrito em 23/03/00)

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu seu blog é espetacular, show noº10 e vi que é meu chara desejo muito sucesso em sua caminhada e objetivo no seu Hiper blog e um feliz ano novo que DEUS ilumine seus caminhos e da sua família
UM grande abraço e tudo de bom
Ass:Rodrigo

My Favorite Things disse...

Maninho, depois destas últimas, vou ler Bukowski, Caio, Dickens e ir para a Cidade Baixa e, perdoa-me o trocadilho, cair na baixaria. Adeus, mundo cruel, só a Dupa me entende.

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